quinta-feira, dezembro 07, 2006

Clara

Na cama, Clara escrevia cartas de amor a ninguém, a todo mundo. Apertava contra o peito palavras bonitas a serem ditas a amores hipotéticos. Preenchia o corpo com abraços apertados de vultos ainda sem rosto definido, homens e mulheres que lhe fariam sentir bem, se sentir amada. Clara construía chalés de inverno, fumaça de lareira saindo pela chaminé, arrumava-se para jantares em família. Sentava defronte ao mar em agradáveis tardes de domingo com seus ex, atuais, futuros amantes. Carlos, Zé, Marta, Ari, Aline, Maurício, Flávio, Margot, Zélia, Catarine, Rodolfo, Clara, Clara, Clara. Sonhava com nomes, idades, portes, vozes ao ouvido, cheiros, gostos, tatos, atitudes. Esfregava detalhes sórdidos na boca, nos seios, na vulva. Clara e seus amantes imaginários rolavam na cama, na grama, na chuva. Ela adorava escrever cartas de amor e guardá-las numa pequena caixinha azulada, como o céu dos dias que se passavam na sua cabeça. Um dia, Clara dizimou paixões, estraçalhou corações, desviou olhares, atenções, jogou roupas alheias janela abaixo. Quebrou pratos, arranhou discos, deu porrada, chorou, mandou tudo à merda, lançou perdigotos, esporros maldições. Clara não era feliz e deixou isso bem claro para cada um dos destinatários das suas cartas. Para cada um comunicou, do modo com que cada um não esperava ser tratado, que havia cansado dos beijos e abraços e juras e trepadas e futuros filhos e contas a pagar e traições e mais o escambau. Seus amantes nada disseram , nem uma única palavra que a fizesse se sentir melhor ou a deixasse mais puta.
Hoje o mar acordou agitado e mais poluído que o normal. O corpo de Clara, branco, pálido, boiando sem vida na superfície. E garrafas e mais garrafas continham cartas de amor a amantes hipotéticos. E boiavam, ah, como boiavam, cada uma seguindo um destino diferente, espumante, vago.

Imagem: Ken Wong .... http://www.clandestina.com

Sonido: I Don't Love Anyone - Belle & Sebastian

Alguém aí sabe onde encontro "punch" pra vender. Mas tem que ser a um precinho camarada. É impressionante como me enrolo com as transições e os finais. Masss, espero que vocês tenham gostado e que Clara não tenha morrido em vão.
Criei um carinho por este miniconto. Tem muito de mim nele. Meu lado "unloved". É isso aí!

3 comentários:

Anônimo disse...

"E garrafas e mais garrafas continham cartas de amor a amantes hipotéticos"
Eu gostei desse pedacinho.
:*
Cabeçonnn.

Anônimo disse...

Clara é um lado aumentado da gente.

Senti simpatia por ela. E a imagem realmente é linda, tem tudo a ver.

Eu tinha amantes imaginários quando criança (sério!), só não me aborreci tanto com eles...

Letras cativantes, as suas. :*

Anônimo disse...

Não sei se é pq ta rolando Sigur Rós no som, mas isso me pareceu tao pós-rock. Mto massa.